Quando a dívida de um vira problema dos dois: o que decidiu o STJ

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o que decidiu o STJ

O casamento, além de um compromisso afetivo, é também uma sociedade jurídica que envolve riscos, deveres e responsabilidades. E quando falamos em patrimônio, a união do casal pode gerar efeitos que vão muito além do afeto: envolve credores, dívidas e obrigações legais. Afinal, até que ponto um cônjuge pode ser responsabilizado por dívidas contraídas pelo outro durante o casamento?

Esse é um dos pontos discutidos em uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trouxe à tona um tema sensível e que pode impactar a vida financeira de muitos casais: a possibilidade de responsabilização solidária entre cônjuges em execuções de dívidas. Em outras palavras, se um dos dois contrai uma dívida, o outro também pode acabar sendo cobrado judicialmente.

O caso analisado: uma dívida, dois envolvidos

No julgamento do REsp 2195589/GO, o Superior Tribunal de Justiça examinou a responsabilidade de uma esposa em uma execução fundada em cheques emitidos apenas por seu marido, durante o casamento. O casal vivia sob o regime da comunhão parcial de bens, e, diante da ausência de bens suficientes no nome do devedor principal, a credora buscou redirecionar a execução à esposa, requerendo inclusive a penhora de bens registrados em nome dela.

O Tribunal de Justiça de Goiás negou o pedido, por entender que não havia prova de que a dívida tivesse revertido em benefício da família de modo a justificar a solidariedade. Contudo, a Terceira Turma do STJ reformou essa decisão. Para a Corte, nas uniões sob o regime de comunhão parcial, presume-se que as dívidas contraídas durante o casamento decorrem do esforço comum e beneficiam a vida em família.

Conforme destacou a relatora, Ministra Nancy Andrighi, “no regime da comunhão parcial de bens há presunção absoluta de esforço comum de ambos os cônjuges para a aquisição do patrimônio, ainda que registrado em nome de apenas um deles. Igualmente, há presunção absoluta de consentimento recíproco para a prática de determinados atos, cuja natureza é essencial para a manutenção da economia doméstica.”. E, com base nessa premissa, entendeu que caberia à esposa provar que a dívida não trouxe benefício à família, invertendo, assim, o ônus da prova tradicional. Nas palavras do acórdão, “ao cônjuge que se insurge contra a dívida adquirida na constância de união sob regime de bens comunheiro compete o ônus de provar não ter havido benefício comum”.

 Com isso, o STJ passou a considerar como presumidamente comum toda obrigação assumida durante o casamento sob o regime de comunhão parcial de bens, ampliando o alcance da cobrança para o credor, mas também transferindo ao cônjuge não devedor um encargo processual consideravelmente mais árduo de cumprir.

Portanto, a repercussão da decisão vai além do caso concreto. Ela sinaliza uma mudança importante na forma como o Judiciário pode interpretar a responsabilidade patrimonial entre cônjuges. Ao deslocar o ônus da prova para aquele que deseja se excluir da execução, o julgado abre espaço para novos precedentes que podem ultrapassar os limites originalmente estabelecidos pela lei.

Assim, o impacto alcança não apenas o casal envolvido no processo, mas também todos os que vivem sob o regime da comunhão parcial. Muitos sequer imaginam que podem ser incluídos em execuções por dívidas contraídas isoladamente por seus parceiros, o que reforça a necessidade de uma aplicação criteriosa e equilibrada da decisão pelos tribunais inferiores.

Onde o STJ acerta: proteção ao crédito e prevenção de fraudes

Um ponto importante — e correto — do julgamento foi o reforço à proteção dos credores. Não são raras as tentativas de esconder patrimônio por meio de registros apenas no nome do cônjuge que não contraiu a dívida. Ao permitir a inclusão do outro cônjuge no processo, o STJ procura evitar que o casamento seja usado como escudo contra a cobrança legítima de dívidas.

A decisão reconhece a realidade prática.  Muitas vezes, as dívidas são contraídas para o dia a dia da família, mesmo quando o contrato não é assinado por ambos. É razoável, então, que os dois respondam juntos, desde que a obrigação tenha ligação com a manutenção da vida comum.

Onde o STJ exagera: presunções que nem sempre se confirmam

Por outro lado, a decisão também gerou importantes preocupações, especialmente quanto à forma como o STJ interpretou os artigos 1.643 e 1.644 do Código Civil. Tais dispositivos preveem a possibilidade de solidariedade entre cônjuges no pagamento de dívidas voltadas à economia doméstica — mas desde que estas se enquadrem, de fato, nessa categoria. O problema está na leitura ampliada adotada pelo STJ, que atribuiu presunção automática de natureza doméstica a todas as dívidas contraídas na constância do casamento sob o regime da comunhão parcial de bens.

Com isso, o tribunal promoveu uma fusão indevida entre duas etapas distintas da análise: primeiro, verificar se a dívida é de cunho doméstico; depois, se, sendo doméstica, gera a responsabilidade solidária. Ao eliminar essa distinção e presumir que qualquer dívida contraída por um dos cônjuges é presumivelmente doméstica, a Corte acabou criando um novo patamar de responsabilização que não encontra respaldo direto na legislação.

Dessa forma, amplia-se o risco de se incluir no polo passivo da execução o cônjuge que não teve qualquer participação na contratação e que, muitas vezes, sequer teve ciência da obrigação. Isso compromete o equilíbrio entre a proteção do crédito e a autonomia patrimonial individual.

A consequência prática? Quem quiser escapar da cobrança terá que provar que a dívida não trouxe nenhum benefício à família — uma tarefa muitas vezes difícil, especialmente quando não há documentação clara sobre como o dinheiro ou bem foi usado.

 Assim, a presunção legal, que deveria atuar como instrumento de facilitação probatória em situações típicas, se converte em mecanismo de imposição automática de responsabilidade, deslocando a lógica do sistema jurídico processual e material e, por consequência, onerando quem não deve.

O que é uma dívida de “economia doméstica”?

É justamente nesse ponto que surgem as maiores incertezas. Afinal, o que se deve entender por “dívida doméstica”? De modo geral, o senso comum tende a associar esse conceito a despesas típicas da vida familiar, como contas de água, luz, mercado, aluguel ou mensalidades escolares. Essas são obrigações que, naturalmente, servem à manutenção da rotina da casa e do bem-estar comum do casal e de eventuais filhos.

No entanto, a linha que separa uma dívida doméstica de uma dívida pessoal pode ser bastante tênue. Será que uma reforma de alto custo na residência entra nessa categoria? E quanto a viagens de lazer? Ou a um empréstimo feito por apenas um dos cônjuges para investir em um negócio próprio, que não envolve a estrutura familiar?

Esses exemplos ilustram como a caracterização de uma dívida como doméstica nem sempre é evidente. O contexto, a finalidade da obrigação, o conhecimento ou consentimento do outro cônjuge e a forma como os recursos foram aplicados são aspectos fundamentais na análise. Por isso, aplicar uma presunção genérica de que toda dívida contraída durante o casamento serve à economia doméstica é extremamente perigoso.

A consequência de tal generalização pode ser a responsabilização de alguém por uma obrigação da qual não participou, não se beneficiou e nem sequer teve conhecimento. E, no dia a dia, provar o contrário — que aquela dívida não teve relação com a manutenção do lar — pode ser uma tarefa extremamente complexa.

O risco de inverter o jogo

Outro aspecto sensível da decisão do STJ diz respeito à inversão do ônus da prova. Em regra, quem faz uma alegação em juízo deve prova-la. No entanto, a Corte entendeu que, nos casos de dívidas contraídas durante a constância do casamento sob regime de comunhão parcial, cabe ao cônjuge que não assinou o contrato provar que a obrigação não beneficiou o casal.

Com isso, a lógica tradicional do processo é alterada. O cônjuge que sequer participou da contratação da dívida, e que talvez nem tivesse ciência da sua existência, é colocado na difícil posição de reunir provas para se isentar da cobrança. Muitas vezes, isso implica comprovar a destinação de valores que sequer passaram por suas mãos ou dos quais não teve controle.

Essa modificação na distribuição da prova pode resultar em distorções, abrindo margem para responsabilizações indevidas e comprometer a previsibilidade e a segurança jurídica. Ao impor esse fardo ao cônjuge alheio à obrigação, corre-se o risco de puni-lo não pela participação, mas pela simples circunstância de estar casado, o que exige uma leitura extremamente comedida e prudente desse entendimento pelos tribunais.

Até onde vai a responsabilidade patrimonial entre cônjuges?

Por fim, é importante lembrar que nem todos os bens do casal podem ser usados para pagar dívidas de um só cônjuge. O Código Civil deixa claro que a meação — a metade que cabe ao outro cônjuge — não pode ser atingida por dívidas que ele não contraiu, salvo exceções específicas.

Infelizmente, porém, a decisão do STJ não explicitou com precisão até onde vai o alcance da responsabilidade patrimonial entre cônjuges. E, fazendo-o desta forma, ao afirmar a solidariedade para fins de execução, deixou em aberto a extensão da penhora sobre os bens do casal, o que pode gerar uma grande insegurança jurídica.

Sem a devida delimitação, corre-se o risco de que bens particulares ou mesmo a meação do cônjuge alheio à dívida sejam atingidos indevidamente. Isso é especialmente problemático quando a dívida foi contraída de forma unilateral, sem qualquer benefício concreto à família.

Por isso, é necessário que cada caso seja analisado com cuidado. A solidariedade entre cônjuges deve respeitar os limites legais e considerar as circunstâncias concretas da dívida e dos bens envolvidos.

Conclusão: mais clareza, mais cuidado

A decisão do STJ é importante e traz avanços na proteção do crédito, mas exige cautela em sua aplicação. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre a proteção dos credores e o respeito à individualidade patrimonial de cada cônjuge.

Para os casais, o recado é claro: é essencial manter transparência na gestão financeira e atenção aos contratos assinados individualmente.

Para os profissionais do direito, o desafio é usar a decisão com responsabilidade, garantindo que sua aplicação não gere injustiças nem quebre a lógica da responsabilidade individual.

No fim das contas, o que se espera é bom senso: nem blindagem patrimonial abusiva, nem solidariedade automática e sem critério. A lei deve ser aplicada com equilíbrio — e os julgamentos, conduzidos com atenção à realidade concreta de cada família.

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